sexta-feira, 15 de maio de 2009

Cartas sem destinatário

Clarice,

Espero, primeiramente, que nunca leia este expurgo de sentimentos. Busco questionar apenas o porquê de vermos só o que conseguimos ver. Nos limitamos de tal modo que acabamos por fechar a porta para qualquer embevecimento ou fantasia a ser experimentada novamente.

Hoje a vi no meio da multidão, mas muito provavelmente você não me viu. De repente senti um vazio. Só o sol, a sombra e o deserto. Uma mágoa, porque aquele momento poderia não significar nada para você. Tal fato me pôs em pensamento profundo.

Fiquei a imaginar que imagem seus olhos traziam. Ou se estaria com os olhos perdidos que nem os meus. Queria saber por qual motivo fiquei parecendo ser só mais um no meio de tantos rostos indecifráveis.
Queria saber o motivo de eu ter virado a paisagem, o quadro pintado e hirto na parede. Guardado na galeria mais antiga e distante.

O rosto não chora, só treme. E o ar de dúvida e repúdio, predomina.

Eu só queria dizer que não sei. O muro, a prisão, o cárcere maldito que se submete o coração. A luz vinda da janela que revela só coisas mortas e a terra ressequida.

B.
_____
Clarice chegou em casa pensativa. Procurou logo seu quarto e acabou por achar o diário em cima da cama. Pôs a bolsa no chão, pegou uma caneta que estava na mesa de estudos e tratou de escrever o que lhe vinha a mente:

Querido diário,

Hoje, na praça, eu o vi. Apresentei um olhar furtivo para me fazer de forte.
Por um momento pensei que eu era o foco da sua visão, mas me enganei. Continuei andando e o corpo amado lá atrás pareceu imóvel, como se não vislumbrasse nada.


A visão. A bela visão do amor. Pretensão. Almejar o futuro que o passado não permitiu.

Será possível tal sorte?

Clarice, então, fechou a luz do dia e se deitou pensando que era noite.
Quem sabe um sonho que a levasse a uma realidade distante, mas desejada.

Quem sabe?

4 comentários:

  1. Excelente!

    Cartas à um amor que espera, que se expõe de véspera e não se sabe dizer.
    Ele e Clarice - Encontros e desencontros?
    Ou a outro, ali na praça, ela endereçava o seu olhar e em seu quarto, ao diário, deitou seu amor?

    Muito bom, Vandré.
    Gosto dos teus textos. Muito.

    Abraços,

    Mai

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  2. Simplesmente vemos e não vemos.
    É isso.
    Hehehe.
    Obrigado pelo comentário de sempre!
    Um beijo, Mai!

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  3. engraçado, né..
    porque o 'B.' tinha destinatário.
    mas a Clarisse (com 'ss' ou 'c'?) não tinha.

    cartas em diários não tem destinatários.

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  4. Nós e o nosso medo de entregar determinadas cartas.
    Hehehe.
    Um beijãoo!

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